A surpreendente história de como o português virou a língua do Brasil
Muito além da imposição: como africanos, indígenas e missionários moldaram a língua que você fala
Este post foi criado, escrito e editado por mim com base em artigos acadêmicos originais, adaptado para o público brasileiro com linguagem acessível. Vídeos, imagens e estrutura são de autoria própria. Boa leitura para você estudante.
Você já parou para pensar por que o Brasil fala português enquanto quase todos os países da América Latina falam espanhol? A resposta mais óbvia, a colonização portuguesa, está correta, mas é apenas o começo da história.
O que poucos sabem é que a consolidação do português como língua principal no Brasil não foi uma simples imposição da Coroa portuguesa, tampouco um processo uniforme, direto ou inevitável. Na verdade, ela envolveu uma complexa rede de interações culturais, religiosas e políticas entre colonizadores, missionários, indígenas e africanos escravizados. Essa é a conclusão do artigo “The Portuguese Language in Brazil: Multiple Peoples, Multiple Forms”, da pesquisadora Luciane Scarato, publicado na revista Diadorim.
Neste post, vamos explorar as descobertas desse estudo e entender por que a língua que falamos hoje é o resultado de uma verdadeira colcha de retalhos histórica, costurada a muitas mãos e vozes.
Uma língua imposta… ou adotada?
Scarato questiona a ideia de que o português foi imposto ao Brasil de forma violenta e direta, como um braço da autoridade da Coroa. Em vez disso, o que se vê é um processo em que o idioma português foi sendo adotado, negociado, adaptado e reinventado, especialmente através das práticas dos missionários católicos, do cotidiano das aldeias e das necessidades práticas de comunicação em uma sociedade altamente plural.
Durante os séculos XVI e XVII, o Brasil era um território onde coexistiam dezenas de línguas indígenas, além dos idiomas africanos trazidos pelos escravizados. Mesmo assim, o português acabou se tornando hegemônico. Como isso aconteceu?
O papel dos missionários e das línguas gerais
A resposta passa, em grande parte, pelos missionários, em especial os jesuítas. Foram eles que criaram as chamadas línguas gerais, idiomas artificiais baseados em elementos comuns a várias línguas indígenas, como ferramentas para evangelização. Essas línguas chegaram a ser oficialmente utilizadas na administração colonial em algumas regiões.
Por muito tempo, os próprios missionários preferiam ensinar o catecismo em línguas indígenas, pois acreditavam que a conversão só era válida se os indígenas entendessem a doutrina. Isso reforça a ideia de que a religião foi uma das chaves para o uso estratégico das línguas.
Mas o cenário mudou a partir do século XVIII. Com a expulsão dos jesuítas e o fortalecimento do controle estatal, surgiram políticas mais agressivas de substituição das línguas indígenas pelo português, como as previstas no Diretório dos Índios (1757), que proibia oficialmente o uso de línguas gerais e tornava o português obrigatório nas aldeias.
A ausência de crioulos e o “português brasileiro”
Um dado curioso apontado pela autora é que, ao contrário do que aconteceu em outras colônias portuguesas, como em partes da Ásia e da África, o Brasil não desenvolveu crioulos linguísticos duradouros. Isso porque, aqui, o português foi sendo incorporado diretamente à vida cotidiana, misturado aos poucos com influências indígenas e africanas.
Essa mistura moldou um português profundamente diferente do europeu. As línguas africanas e ameríndias não só deixaram marcas no vocabulário e na pronúncia, como também influenciaram estruturas gramaticais e expressões idiomáticas. O que hoje chamamos de “português brasileiro” é, na verdade, uma língua cheia de camadas históricas.
Língua, poder e identidade
Além da religião, outro fator central nesse processo foi o poder simbólico do idioma. Falar português passou a representar uma forma de aproximação com o poder colonial, com a Igreja, com os centros urbanos. Mesmo assim, a adoção do português nem sempre significava submissão: muitas vezes, era uma estratégia de sobrevivência, de negociação, de convivência.
O estudo de Scarato mostra que, para entender como o português se consolidou no Brasil, é preciso ir além da ideia de imposição. É preciso olhar para as formas sutis de poder, para os espaços de contato entre culturas e para o papel das pessoas comuns, missionários, escravizados, indígenas, na construção dessa história.
Por que isso importa hoje?
Compreender essa trajetória nos ajuda a reconhecer a riqueza e a diversidade da nossa própria língua. O português que falamos hoje não é uma “versão errada” do português europeu, mas sim um reflexo das histórias, dos corpos e das culturas que se cruzaram no território brasileiro. É um idioma marcado por resistência, adaptação e reinvenção constante.
Mais do que um instrumento de comunicação, a língua é também um espelho da nossa formação social. E conhecer essa história é, de certa forma, resgatar vozes que durante muito tempo foram silenciadas.
Conclusão
O português brasileiro é, acima de tudo, um idioma coletivo. Um idioma que não nasceu puro, nem foi mantido intocado. Ele foi construído em aldeias, navios, missões religiosas, plantações, quilombos e cidades coloniais. Cada sotaque, cada palavra de origem africana ou indígena, cada expressão popular carrega consigo uma parte dessa história.
Portanto, falar português no Brasil é, também, falar da nossa diversidade, e isso é algo que merece ser celebrado.
Referência:
SCARATO, Luciane. The Portuguese Language in Brazil: Multiple Peoples, Multiple Forms. Revista Diadorim, Rio de Janeiro, vol. 21, Especial, p. 200-226, 2019.