Quando uma página em branco virou um clássico da ciência
Como um artigo de uma página vazia se tornou uma das publicações mais memoráveis, e engraçadas, da psicologia.
Imagine abrir um artigo científico esperando gráficos, tabelas, análises profundas e encontrar apenas uma página em branco. Nada escrito. Nada mesmo. Só o título, os detalhes do periódico e uma nota de rodapé. Parece piada? É. Mas também é ciência.
Em 1974, o psicólogo Dennis Upper publicou no Journal of Applied Behavior Analysis aquele que é, possivelmente, o artigo acadêmico mais curto de todos os tempos. O título já entrega a proposta: “The Unsuccessful Self-Treatment of a Case of ‘Writer’s Block’” — ou, em tradução livre, “O Tratamento Mal-Sucedido de um Caso de ‘Bloqueio de Escritor'”.
O conteúdo? Nenhum. A página está completamente em branco. E é justamente isso que faz dele um ícone.
Por que isso importa? Porque rir também é uma forma de pensar
A publicação pode parecer uma piada interna entre psicólogos e de certo modo, é. Mas ela também carrega uma mensagem poderosa sobre criatividade, saúde mental e até sobre os próprios limites da comunicação científica.
O bloqueio criativo é um problema real para quem escreve, pesquisa ou cria. E ele pode ser paralisante. Dennis Upper decidiu enfrentá-lo de um jeito inesperado: usando a própria falta de palavras como matéria-prima para seu artigo. A ausência de texto virou o texto. A falha virou forma.
E mais: ao publicar isso em uma revista científica respeitável, Upper rompeu com o formalismo acadêmico e mostrou que há espaço, ainda que pequeno, para o humor e a leveza em ambientes normalmente tão sérios.
O método mais simples da ciência
Não há metodologia descrita no artigo. Não há experimento, nem dados. Apenas a indicação de que o autor tentou superar o bloqueio de escritor… e falhou.
Na verdade, há sim uma espécie de “revisão por pares”: a nota de rodapé da revista, onde o revisor afirma, com tom igualmente sarcástico, que não conseguiu encontrar nenhuma falha no manuscrito.
É um jogo entre o autor e os leitores. Um gesto cômico, mas também uma provocação. E funcionou.
O que veio depois? Mais ciência e mais risadas
O artigo de Dennis Upper não foi esquecido. Pelo contrário: tornou-se cultuado. Foi citado por diversos outros estudos que replicaram a proposta de forma igualmente bem-humorada, inclusive com “artigos” compostos de páginas em branco e revisões fictícias. Tudo revisado por pares. Tudo publicado.
Mais do que uma curiosidade, esse fenômeno mostra que há um desejo real por abordagens criativas na ciência. Não se trata apenas de fazer graça, mas de abrir espaço para formas alternativas de lidar com temas difíceis, como o bloqueio criativo ou a pressão acadêmica.
O impacto de uma página em branco
Apesar de não trazer dados nem conclusões, o artigo de Upper tem sido utilizado em cursos, palestras e textos sobre escrita científica e criatividade. Ele virou uma espécie de símbolo da luta contra a paralisia criativa e, ao mesmo tempo, uma homenagem à concisão e ao poder do humor.
Ele também desafia a própria ideia do que é um artigo científico. Precisa mesmo ter 30 páginas para ser relevante? Precisa ser solene para ser respeitado?
A resposta, pelo visto, é não.
O que aprendemos com isso?
A lição deixada por Dennis Upper é simples: mesmo no mundo altamente técnico da ciência, ainda há espaço para o inesperado. Para rir. Para criar. Para dizer algo importante, mesmo quando não conseguimos dizer nada.
E talvez seja justamente aí que mora a genialidade desse trabalho: em mostrar que, às vezes, a melhor forma de tratar o bloqueio criativo é aceitá-lo. E transformá-lo em arte. Ou, nesse caso, em ciência.
REFERÊNCIA
Título: The Unsuccessful Self-Treatment of a Case of “Writer’s Block”
Autor: Dennis Upper
Publicado em: Journal of Applied Behavior Analysis, 1974
Link ou DOI: https://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1901/jaba.1974.7-497a